No último dia 22, o Happy Hour Nespe partiu para a sua primeira cobertura internacional. A convite da Feira do Livro de Buenos Aires, eu estive na capital portenha para acompanhar as Jornadas Profissionais da Feira que segue com a sua programação até o próximo domingo (13). Na mala, a vontade de rever amigos que fiz em tantos anos de cobertura deste evento e, sobretudo, a curiosidade para ver como as coisas estão por lá depois de pandemia e do acirramento da crise econômica e política vivida pelos nuestros hermanos.
Dos amigos, tive a chance de rever e abraçar Jorge Brianza, um dos diretores da Feira; Marifé Boix García, vice-presidente da Feira de Frankfurt; Trini Vergara, ex-presidente da Câmara Argentina de Publicações e mais um bocado de gente que não via há tempos. Conheci outras tantas pessoas. Foi muito positivo, neste sentido.
O clima da feira era de otimismo, apesar de todos os pesares que o país vive neste 2024: aprofundamento da crise econômica e a eleição de Javier Milei e a sua motosserra. Não à toa, no mesmo dia que a Feira se abria para profissionais, 800 mil pessoas (quase 1/3 da população da capital) marcharam rumo à Plaza de Mayo em um grande protesto em defesa da educação pública e gratuita no país.
A Feira é política
O descontentamento com as políticas de Milei encontrou eco na Feira. Pela primeira vez na história da Feira – que chegou a sua 48ª edição –, o governo federal não está presente institucional e oficialmente, com um estande. A justificativa era que o Estado Nacional não gastaria 300 milhões de pesos (algo próximo de R$ 1,6 milhão no câmbio Blue) com o estande. O Banco Nación, tradicional patrocinador do evento, também não está presente neste ano na Feira.
Paradoxalmente, apesar deste claro sinal de não apoio, a Casa Rosada programou a ida de Milei à Feira no próximo dia 12. Ele deve lançar o seu novo livro lá, numa espécie de tatersal, espaço que nunca foi utilizado pela Feira.
Em seu discurso na cerimônia de abertura da Feira, Alejandro Vaccaro, presidente da Fundação El Libro, promotora do evento, noticiou a decisão de Milei de visitar a Feira e uma uníssona vaia surgiu da plateia. E Vaccaro foi além e declarou: “A participação [do presidente] na Feira é extraordinária [não pela visita em si, já que é comum o presidente da República ir à Feira, mas pela escolha do local onde acontecerá] e envolve uma série de gastos igualmente extraordinários que a Fundação El Libro não pode arcar. Senhor presidente, te digo com uma mão no coração, não temos dinheiro. Portanto, tudo o que está relacionado a sua segurança e das pessoas que virão para o seu evento correrão pela sua conta própria, ou pior, será um gasto extra para o tesouro nacional”. Para bom entendedor, pingo é letra.
Outro assunto que rondou os corredores da feira é a ameaça à Lei de Defesa da Atividade Livreira. Milei prometeu revogá-la, pelo decretaço apelidado de Ley Ómnibus. No mesmo discurso na abertura da Feira, Vaccaro foi veemente neste aspecto. “Como nunca, este espaço cultural [referindo-se à Feira] será o eixo central em torno do qual girará o repúdio de todas as forças culturais contra as políticas devastadoras propostas por este governo”, disse o presidente da Fundação El Libro. “As medidas que se tentaram implementar são ataques ao coração da cultura. É por isso que nos manifestamos com todas as nossas forças e dizemos não ao fim do Fundo Nacional das Artes. Dizemos não ao encerramento das atividades do Instituto Nacional do Teatro. Não ao desmantelamento do Instituto Nacional de Cinema. Não à revogação da Lei de Defesa da Atividade Livreira. Não à recusa de compra de 14 milhões de livros escolares pelo Ministério do Capital Humano que seriam entregues nas escolas públicas, com o argumento infantil e risível, se não fosse trágico, de que não há tempo”, completou com firmeza.
Programação profissional da Feira do Livro de Buenos Aires
Uma coisa nova que pude acompanhar neste ano era que as salas onde aconteceram os debates estavam absolutamente lotadas. Em anos anteriores, não era difícil conseguir um assento nos eventos. Neste ano, foi impossível para quem não chegou muito antes, o meu caso. Tive que colocar o ouvido na porta para ouvir partes da sessão de Daniel Benchimon, sobre as aplicações de inteligência artificial no mercado editorial. Desisti quando percebi que não ia passar das discussões que já temos por aqui. Sobre isso, já escrevi aqui no Happy Hour Nespe, inclusive.
O mercado argentino
De acordo com dados da Câmara Argentina do Livro (CAL), a indústria percebeu uma queda de 24% na venda de unidades entre 2019 e 2023. Se comparado com 2016, início da crise econômica, esse tombo é ainda maior, de 40%. O varejo também registra quedas na ordem de 40% nas vendas. A hiperinflação registrada pelos nossos Hermanos não permite, facilmente, estabelecer uma relação entre faturamento.
Outro grande problema é o custo do papel, que representa hoje 55% dos custos de produção de um livro na Argentina – este índice tradicionalmente era de 30%, de acordo com a CAL. Tudo isso impactou nas tiragens médias, que caiu de 2.900 exemplares em 2016 para 1.700 em 2023. Para um país que se orgulha de ter mais de mil livrarias em seu território, uma tiragem de 1.700 exemplares mal dá para colocar uma cópia do livro em cada loja.